8 de Março de 2008. 100 000 professores manifestam-se em Lisboa contra as políticas educativas do governo, em especial contra o novo modelo de avaliação de desempenho. É a maior manifestação de que há memória da classe docente e uma das maiores após o 25 de Abril.
E eu não estou lá! E devia estar! Todo o meu percurso, a minha história pessoal, o que acredito de mim mesma, indicariam que era lá o meu lugar, ao lado das pessoas com quem, desde há 27 anos, partilho os quotidianos que dão, em grande parte, sentido à minha vida.
Então porque não fui? O que me leva a não estar em sintonia com o sentimento de indignação de tantos milhares de colegas que desfilam por aquilo que convictamente acreditam ser a defesa da sua dignidade de profissionais? Colegas de todas as escolas do país, mais novos e mais velhos, contratados e efectivos, reformados, das mais variadas opções ideológicas e políticas, com as mais diferentes formas de estar na vida e mesmo na escola....Colegas que conheço, respeito e admiro porque sei que só a sua dedicação tem permitido que as escolas funcionem e milhares de crianças e jovens aprendam. E isto apesar de todos os governos e ministros, secretários e subsecretários de estado, directores gerais e menos gerais, assessores e adjuntos, comissões e comités, e etc., etc, etc....
Então, porque é que eu não me sinto ofendida por esta avaliação? Porque é que não sinto que combatê-la é defender a escola pública, o 25 de Abril no ensino, a Liberdade na educação, uma escola de qualidade? Porque é que não consigo deixar de sentir que há aqui um tremendo equívoco, um enorme mal-entendido?
Parto de princípio que posso estar errada (devo estar errada, com certeza...): se 90 % dos meus colegas estão contra esta avaliação, é estatisticamente pouco provável que quem a defenda esteja certo.....Ou não são estas as regras da democracia?....
Procuro razões para este meu posicionamento tão matematicamente anormal: será que os anos me tornaram menos crítica e mais permeável à propaganda do poder, será que tenho um défice de consciência profissional que me torna insensível a ataques óbvios e escandalosos à dignidade da minha profissão, será que por limitações de inteligência não estou a perceber as implicações gravíssimas da implementação desta avaliação nas escolas ou será que me acomodei numa inércia descrente de quem já viveu grandes movimentos de massas que se esfumaram sem deixar rasto?
Nenhuma destas razões me satisfaz, não encontro evidências no meu comportamento habitual que confirmem qualquer destas hipóteses: faço os possíveis por me manter razoavelmente lúcida, o meu QI está absolutamente dentro da média, tenho consciência bastante do meu estatuto como profissional, conservo, aos 50 anos, uns saudáveis laivos de idealismo..... E, quanto a comodismo, é bem mais incómodo ter uma opinião diferente de 100 000.......
Então porquê? Porque não estou eu no Marquês de Pombal a lutar contra uma tão monstruosa indignidade que movimenta tantos milhares de colegas meus, oficiais do mesmo ofício?
Se eu até concordo que houve uma total inépcia e falta de senso político na condução deste processo: como é possível pensar que se podem mudar práticas de décadas em tão pouco tempo, sem criar condições que dêem confiança às pessoas na credibilidade e seriedade dos processos? Como é possível dirigentes políticos serem tão cegos que não avaliem o impacto de mudanças tão profundas em profissionais que vêm acumulando frustrações e desencanto há anos e anos? Como se pode pensar que se muda um sistema tão sensível legislando em catadupa, num terramoto de decretos e despachos que ameaça desmoronar de vez o edifício já tão frágil? Como é possível ignorar que, às inevitáveis dores que as mudanças causam, há que juntar a esperança de que vale a pena?
Mas, apesar de considerar tudo isto, eu não estou no Terreiro do Paço.....
Releio o famigerado decreto-lei mais uma vez - “ instrumentos de registo elaborados e aprovados pelo Conselho Pedagógico”; “ indicadores de medida previamente estabelecidos pela escola para o progresso dos resultados escolares”; “objectivos individuais fixados por acordo avaliado/avaliador”; “ o docente tem direito a que sejam garantidos os meios e condições necessários ao seu desempenho” e etc, etc, etc....
E então, finalmente, percebo porque não estou ao lado dos 100 000: muito simplesmente, porque confio neles......
Porque o Conselho Pedagógico, que irá elaborar/aprovar as fichas que vão ser utilizadas na minha avaliação, é constituído por colegas meus; porque os indicadores de medida de acordo com os quais deverei definir os resultados esperados dos meus alunos, aferidos pelos resultados médios da disciplina e da turma, são estabelecidos pelo Projecto Educativo da minha escola; porque o professor titular/coordenador de departamento, que irá formular comigo os objectivos, assistir às minhas aulas e aplicar as fichas na minha avaliação, é meu colega; porque o Director Executivo que irá avaliar outros aspectos do meu desempenho, também é professor e, muito provavelmente, professor da minha escola; porque até a Comissão de coordenação da avaliação, que intervirá se houver discordância na avaliação, é constituída por colegas do Pedagógico.
Como posso discordar de um modelo de avaliação que assenta no juízo dos meus pares, colegas com quem trabalho todos os dias, que partilham comigo as dificuldades e problemas de um mesmo contexto socio-educativo, que me conhecem, a quem devo necessariamente reconhecer a competência, por serem professores como eu, para comigo debaterem construtivamente práticas e orientações, e assim me ajudarem a melhorar o meu desempenho profissional?
Em quem vou confiar então para me avaliar? Numa entidade externa, vidé inspector, que aterra um dia na minha aula e, sem me conhecer de lado nenhum, avalia o meu trabalho de acordo com uma qualquer grelha, inventada por um teórico da educação, que resultou muito bem na Finlândia, e que o ministério aprovou para ser aplicada uniformemente de Bragança a Faro?
Ou então num exame de três ou quatro horas, já agora feito na universidade, onde um júri constituído por conceituadas personalidades, que nunca deram uma aula a meninos como os meus alunos, ou puseram os pés numa escola semelhante à minha, vai judiciosamente avaliar se sou uma boa professora?
Ou vai ficar tudo como está? Ninguém seriamente pode defender essa posição....Ou então os anos e anos que ouvi de recriminações e críticas na sala de professores pela tremenda injustiça de um sistema que não diferenciava níveis de desempenho, foram meras alucinações minhas.....
E agora? O que espero? Do Ministério espero que tenha o bom senso de perceber que não se impõem reformas a partir de um gabinete da 5 de Outubro, mas também que tenha a firmeza de não recuar, por razões de popularidade, numa avaliação que, em meu entender, tem virtualidades para melhorar o sistema, se para tal forem criadas as necessárias condições; dos Sindicatos espero que não tentem aproveitar com objectivos partidários aquilo que é a justificada indignação de uma classe profissional que merecia mais respeito do poder; dos meus colegas, espero que tenham a necessária serenidade e lucidez para discernirem o que está verdadeiramente em jogo e que saibam canalizar a enorme energia e espírito de luta que demonstraram para conquistar a verdadeira autonomia que pode transformar a Escola portuguesa.
E de mim? Ora, de mim espero ter tranquilidade para levar o ano escolar o melhor possível até ao fim e não me angustiar demasiado com o facto de pertencer ao 1% que não pede a demissão da Ministra da Educação..........
Professora Antónia Pereira
5 comentários:
Parabéns pela tua intervenção cara colega..
Também não estive entre os 100.000, e nem por isso me sinto com problemas de consciência.
Isto é sobretudo uma excelente lição para os sindicatos, que, ao não esclarecerem de forma eficaz os professores, estão a comprometer a sua capacidade futura de intervir junto deles.
Nunca os sindicatos propuseram formas de luta, pela dignificação e responsabilização profissional dos professores, que envolvesse a sua formação e competência.
Isto é também uma chamada de atenção para os colegas que cristalizaram na sua acção,(não é por acaso que mais de metade dos 100.000, nunca tinham participado numa manisfestação).
Colegas que não leram a inesperada, (reconheça-se) mas nem por isso menos necessária, remessa de Normativos que pretendem por em marcha o processo de avaliação, estão a revelar-se excessivamente descuidados com o seu importante papel junto da Escola.
As posição da Ministra são efectivamente uma pedrada no charco, na mediania da intervenção da Escola nos destinos do nosso país.
Ela propõe a capacitação dos professores, analisada à luz dos espaços de discussão plural existentes na Escola. Todos em conjunto seremos os decisores deste processo, sem a intervenção de corpos estranhos. É em conjunto que nos devemos pensar e reflectir sobre o caminho que a nossa relação com os alunos está a ter.
Será nestes espaços que reconheceremos todos o que temos que mudar e em que sentido devemos mudar.
E os sindicatos que se cuidem, porque com atitudes demagógicas, derrotistas e desprovidas de alternativas, não farão de futuro falta nenhuma.
Parabéns uma vez mais pela coragem.
Um colega
Para nós professores pensarmos e para aqueles, professores ou não, que ainda não sabem bem do que se trata, e só mandam palpites, se apercebam através desta analogia bem feita.
Foi-me enviada por um amigo:
Já que muitos jornalistas e comentadores defendem e compreendem o modelo proposto para a avaliação dos docentes, estranho
que, por analogia, não o apliquem a outras profissões (médicos, enfermeiros, juízes, etc).
Se é suposto compreenderem o que está em causa e as virtualidades deste modelo, vamos imaginar a sua aplicação a uma outra profissão, os médicos.
A carreira seria dividida em duas: médico titular (a que apenas um terço dos profissionais poderia aspirar) e médico.
A avaliação seria feita pelos pares e pelo director de
serviços. Assim, o médico titular teria de assistir a três sessões de
consultas, por ano, dos seus subordinados, verificar o diagnóstico, tratamento e prescrição de todos os pacientes observados. Avaliaria também um portefólio com o registo de todos os doentes a cargo do médico a avaliar, com todos os planos de acção, tratamentos e respectiva análise relativa aos pacientes.
O médico teria de estabelecer, anualmente os seus objectivos: doentes a tratar, a curar, etc. A morte de qualquer paciente, ainda que por razões alheias à acção médica, seria penalizadora para o clínico, bem como todos os casos de insucesso na cura, ainda que grande parte dos doentes sofresse de doença incurável, ou terminal. Seriam avaliados da mesma forma todos os clínicos, quer a sua especialidade fosse oncologia, nefrologia ou cirurgia estética...
Poder-se-ia estabelecer a analogia completa, mas penso que os nossos 'especialistas' na área da educação não terão dificuldade em
levar o exercício até ao fim.
A questão é saber se consideram aceitável o modelo? Caso a resposta seja afirmativa, então porque não aplicar o mesmo, tão
virtuoso, a todas as profissões?
Pensem nisso.
JB
É realmente necessário ter coragem para discordar dos 100000.O seu testemunho transpira sinceridade.Estou totalmente de acordo com a colega, e vivo dias difíceis por conscientemente não poder estar com a maioria.Tentarei que a consciência não traia a minha lucidez!
Ora, Dora, lá por não se concordar não significa q se seja ignorante ou q se mande palpites! Pode haver opiniões diferentes e todas elas terem fundamento! E ainda bem, senão o mundo seria a preto e branco e, não, ele é bem colorido!
Depois , até acho q a analogia está interessante, mas, como muitas analogias, é falaciosa, compara actividades q não podem ser comparáveis.
Mas, para mim, a questão fundamental é: qual a alternativa à avaliação? Deixar tudo como está? E, como está, está bem ? Parece-me q nenhum prof., com um mínimo de seriedade, pode responder afirmativamente a estas questões.....
Abraço amigo para ti
Antónia
Antónia, a meu ver, não é avaliação sim ou não que está em causa. Todos os professores conscientes querem a avaliação, querem a mudança, querem que as coisas não fiquem como têm sido até agora, o problema dos 100 mil não é esse mas sim a forma como a avaliaçao está a tentar ser imposta.
Ainda bem que ainda vivemos em democracia e que temos direito a ter opinião.
A progressão como ela era antes, não premiava a qualidade e o trabalho, não distinguia o bom do mau.
Eu quero a avaliação como forma de separar o trigo do joio. Sempre senti que faltava na escola o reconhecimento pelo trabalho e empenho. Mas defendo uma avaliação justa, sem rasteiras e sem afrontas aos direitos do professor como cidadão. Isso só se consegue com o diálogo. Todas as realizações têm mais valor quando são partilhadas, discutidas colaborativamente. Ninguem melhor que os professores para saber isso. Há muito que o professor não impõe e sim apela ao trabalho colaborativo em prole do sucesso na aprendizagem. Por essa razão, os professores não podem aceitar imposições sem diálogo, discussão e interacção de ideias.
Parece-me que só numa plataforma de diálogo e de colaboração entre os conhecimentos e os saberes, se atingem objectivos do interesse de todos, mas sosbretudo da aprendizagem que é essa a finalidade primeira da escola.
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